Capítulo 4
Cidade Templo de Luxor
A noite estava densa, com uma névoa que cobria toda a superfície dos lagos. Um sentimento de ansiedade estava estampada em todas as centenas de rostos que se reuniram diante da Praça Principal para assistir o Ritual.
Teronk vestia uma túnica azul escuro, com uma coroa de diamantes encimada por um enorme topázio em forma de losango, a tradicional peça feita para coroar o primeiro Hellsy. Rob, mais modesto, vestia sua túnica branca com desenhos negros e o Unicórnio, símbolo da Ordem Sagrada, estampado em dourado no peito. Os longos cabelos brancos estavam trançados com fios de prata. Ambos estavam no topo da Pirâmide, uma das mais altas construções de Dymond, de onde podiam assistir toda a cidade de Luxor. As largas ruas, os jardins suspensos, os lagos. E, ocupando cada espaço, centenas de olhos flamejantes que miravam o topo da estrutura.
Rob e Teronk, no papel de tutores dos garotos, estavam aguardando a chegada dos mesmos, dos sacerdotes e do Imperador. Teronk se mostrava calmo, mas Rob estava radiante.
_ Participei da cerimônia de Tales, e da do pai dele há muito tempo, mas jamais me esquecerei. Ver os Quatro em pessoa, a sussurrar o destino que eles escolheram para alguém é simplesmente maravilhoso. Apesar de um pouco cruel também.
Teronk sempre se perguntou, desde que ingressou na Ordem, qual seria a real idade de Rob. Chegara a questionar se ele era realmente humano, já que tais seres vivem muito pouco em comparação com os elfos. O velho mago provavelmente descobrira alguma maneira de lutar contra a velhice.
_ Espero que não seja muito longa. Estou com sono, já que tenho dormido como um animal todos estes dias. - Disse Teronk, com verdade nas palavras.
_ Não que sejamos todos seres de pura energia, não é mesmo meu amigo? Deveria ter aprendido a apreciar uma vida mais selvagem, sem o conforto de suas cidades. Afinal, somos todos animais. - Teronk resolveu não retaliar, e Rob completou feliz. - Jamais pronuncia a palavra animal com o mesmo tom meu caro, pelo menos não em terras Possowry.
O primeiro a aparecer foi Urbi. O sacerdote tinha um colar de diamante enorme pendurado no pescoço. Quando chegou ao topo, todos os demais Possowry se ajoelharam, numa coreografia perfeita de magia e mistério. Teronk se deliciava com a cultura daquele povo, com sua poderosa religiosidade. O poder da pregação deles havia contagiado o Império séculos antes, e tornado a crença nas pequenas divindades, tanto humanas quanto élficas, em apenas um micro culto. Haviam adquirido importância na corte, capazes de decidir que caminho tomar em vários momentos históricos do Império.
Ao vê-lo mais de perto, o elfo notou que as pedras de diamante emanavam uma energia poderosa, provavelmente advinda da proximidade das divindades.
_ Povo de Luxor! - A voz do tigre era selvagem como as quedas d'água do Cânion Meteora. Toda a multidão silenciou. - Todos aqueles que hoje se reúnem neste local, devem ter ciência da magnitude do ritual a ser realizado. Quando os deuses abençoam um filho real, o destino deste mundo começa a ser traçado. Recebam, os herdeiros por direito de Sacro Império de Dymond.
Líncerat entrou, com Heitor no braços, e em seguida Tales apareceu com Lexis. O casal imperial vestia túnicas simples com as cores reais, enquanto os garotos estavam vestidos de branco. Uma aura de mistério pairava pelo ambiente, e a expressão de seriedade do casal imperial ajudava a criar um clima cada vez mais poderoso entre os presentes.
O velho possowry se aproximou, e sorriu para Tales e Líncerat, um sorriso que inquietava. Se você observasse de perto, veria-o lá, quente e convidativo, como o sorriso de um pai que retorna de um cansativo dia de trabalho. Mas se estivesse mais distante, veria apenas um grande tigre mostrando as presas de maneira não tão ameaçadora, mas ainda assim capaz de fazer recuar um homem bravo.
O diamante pendia no peito velho tigre, emanando uma energia silenciosa. Teronk pensou ter visto Tales murmurar uma oração baixinho. O rosto do Imperador estava claramente abalado. Líncerat estava mais serena, porém vez ou outra, lançava olhares assustados pera a multidão. "Talvez procure por algum inimigo. " Mas Teronk afastou logo esses pensamentos. Estavam no local provavelmente mais seguro de todas as terras do Império.
Tales estava sentado em um trono de diamante, e Líncerat em um de ouro. Teronk se posicionou ao lado de Tales, e Rob se postou extremamente solene ao lado de Líncerat. O Sumo Sacerdote fez uma pausa que pareceu a Rob ter durado a eternidade, e deu inicio ao ritual. Num gesto de pura altivez, o grande felino posicionou as patas no chão como se estivesse se preparando para um potente salto, mas ao invés disso, abaixou a cabeça quase até ao chão. O Colar raspou a superfície áspera da pedra da pirâmide, fazendo o som do metal contra pedra ressoar por toda a cidade. O silêncio era descomunal.
E então tudo explodiu em som. O rugido veio tão forte que quase derrubou todos os que não estavam sentado ou sob quatro patas. Teronk pensou que ouviria choro, gritos de dor e no mesmo instante procurou sentir se seus ouvidos havia sofrido algum dano. Mas assim que olhou para Rob, e viu o sorriso tranqilo deste, detectou que o som do rugido foi como o mais suave farfalhar das folhas de uma oliveira dos campos abertos da Grande Planície. Por mais terrível e grandioso que tenha sido, foi também o mais sereno e suave possível. E quando ele falou, a força de sua voz parecia poder chegar ao âmago dos seres.
_ Ó grandes espíritos primevos, que moldaram o mundo de acordo com vossa vontade. Neste momento escolham o nosso próximo líder. Concedam a ele vossa marca, e guiem-no até seu destino!
O colar de diamantes brilhou de uma maneira que fez todos pensarem que estava a ponto de rachar e se estilhaçar. Uma luz branca como a neve do mais claro inverno começou a se expandir e a preencher todos os lugares. Era tão forte e poderosa, que ninguém poderia ver a própria mão se desejasse.
Rob estava sem fôlego Teronk parecia a ponto de perder os sentidos, mas a energia parecia não afetar a família Imperial. Aos poucos, a luz foi se dissipando, e, diante dos olhos de todos, quatro formas estavam pousadas diante dos meninos. Uma presença era verde, alta, musculosa, e não possuía forma. A outra, menor, tinha o corpo esguio e bem desenhado, cabelos brancos que escorriam como uma cachoeira pelas costas. O rosto era fino e delicado, mas seria impossível delinear qual era o sexo ou mesmo a idade. Um rosto de mistério, decorado com olhos azuis de profundo pesar. A terceira forma, era fraca, translúcida. Podia-se vislumbrar algo de sua expressão, de seus cabelos claros e de suas roupas esfarrapadas, mas no momento em que virasse o olhar, não seria possível recordar-se qual forma estes tinham.
A quarta forma, essa era perfeita. Um ser de puro fogo, mas não era um fogo calmo ou um fogo leve. era um fogo vivo, pesado, tingido de sangue e de ira. No topo da cabeça, chamas negras dançavam feito faunos festivos. Os olhos eram de puro metal derretido, contorcendo-se sem parar, tentando a todo custo retornar a seu estado natural. Maa. Vesi. Õhk. Tulek. Os Quatro estavam reunidos no mundo mortal mais uma vez. Todos, incluindo o casal imperial e seus conselheiros, ajoelharam-se. Ergueram-se todos, para que os deuses pudesse escolher. Mas quando os deuses olharam para os herdeiros, Líncerat não viu uma sombra sequer de aprovação. Apena ódio. E talvez algum temor.
Tulek foi o primeiro a se mover. Em um piscar de olhos, estava sob os garotos. Sua chamas lamberam as faces de ambos os garotos, mas o sono de ambos era demasiado profundo. As mãos do Imperador tremiam, mas ele se manteve firme. A marca que o mesmo deus, Tulek, o concedera quando ainda era uma criança, ardia no peito largo do guerreiro. Esse era o destino daqueles marcados por Tulek. Desde o início do império foi assim. Aqueles por ele escolhidos guiava o império pelo caminho da prosperidade e da riqueza, mas o custo era a guerra. Líncerat pediu para que nenhum de seus adoráveis garotos fossem levados por esse caminho. Mas Tulek se recusou a ouvir suas preces.
A mão em chamas repentinamente se tornou uma mão de mão, delicada e macia. Tocou de leve a face do menino, e por sobre seu olho esquerdo, da sobrancelha até as maças do rosto, a lança vermelha surgiu. Tulek se retirou tão rápido quanto um relâmpago. Antes que pudesse conter, uma lágrima escorreu pelo rosto de Líncerat. Mas a gota salgada de dor não chegou aos seus lábios. Antes disso, uma mão suave a tomou e a fez se transformar em um floco de neve.
Vesi olhou para a imperatriz, e a elfo pode sentir a profundidade daquele olhar. Confortante e esmagador. Erguendo as mãos, fez surgiu um tanto de água, e com ele perscrutou o destino dos garotos. O menino marcado, foi o mais demorado. Mas a água pousou na face do outro, entre o lado esquerdo do rosto e a sobrancelha, quase como uma lágrima. A água se tornou gelo, e o gelo se tornou parte da pele do garoto, fazendo brilhar um tridente azul como o céu ou o como o mar ou como ambos. Tulek ter escolhido um dos herdeiros seria o bastante, e os deuses deveriam ter finalizado o ritual. Mas ao invés disso, ambos os garotos foram marcados. Antes de se retirar, Vesi olhou mais uma vez para Líncerat. E ela vislumbrou apenas piedade, e não mais ódio.
Maa foi rápido, grotesco e ainda assim, cheio de serenidade. Passou o dedo indicador por cada um dos meninos, deixando um rastro de lama. Fez uma careta, se é que isso era possível naquele rosto sem forma, e indicou para o garoto marcado por Tulek Quando todos pensava que o menino receberia outra marca poderosa, já que os filhos marcados por Maa haviam reerguido reinos e restaurado povos inteiros, foi no rosto do garoto de Vesi que o galho de carvalho surgiu, sob o olho direito.
Õhk veio calmo, vagaroso. Tales achou que podia vê-lo pensativo. Teronk já nem sabia mais o que pensar. E Rob continuava inquieto, mas agora com uma seriedade e preocupação talvez jamais vista em seu semblante. O deus do ar, do vento, da brisa e do tornado se aproximou das cadeiras. E ali ficou, a observar os herdeiros, enquanto um vento suave soprava os cabelos de todos, fazendo os pelos alvos de Urbi se misturarem, e causando uma momentânea confusão nos desenhos de seu lombo. Talvez tenha demorado um minuto, talvez dez. Talvez uma hora completa. Mas por fim, um redemoinho girou sobre o menino já duas vezes marcado, e três espirais quase invisíveis surgiram na testa da criança, oculta entre os cabelos lisos.
Urbi se posicionou entre os deuses e a família imperial, enquanto Õhk se reunia a seus iguais. Tulek parecia divertido, e Maa talvez tenha se irritado com ele. Mas entender as emoções de deuses, não é trabalho para homens. Por fim, cada um dele se aproximou do velho tigre, e sussurrou palavras incompreensíveis em seus ouvidos. E se foram. Em um momento estavam lá, e no outro restava apenas o silêncio da noite. Ele, e um garoto de cabelos negros como o ébano, e um outro de cabelos tão alvos quanto o primeiro raio de Órion. O primeiro tinha uma lança no olho esquerdo. O segundo tinha três marcas. E ambos, ambos, estavam destinados a mudar Dymond.
***
Teronk e Rob se encontraram em uma salão nos níveis subterrâneos da Pirâmide. O velho homem sentiu-se incomodado ao olhar para as paredes. Nelas, o mundo caía diante de mares de fogo, montanhas de água, rajadas de terra negra e ondas de tornados. Um verdadeiro espetáculo catastrófico. O elfo não se importava em observar as imagens, mas se admirou com a beleza da mobília. Sedas, móveis em marfim e cristal, cortinas de puro veludo. Urbi entrou apressado, sem nenhum guarda ou sacerdote o acompanhando. Ele os convocara para uma reunião urgente após o estranho desfecho do ritual.
_ Falarei franca e diretamente senhores, pois existem situações que exigem discrição e calma. - A voz serena do Possowry era insuficiente para acalmar o coração de Rob. - Os sussurros que ouvi hoje, jamais foram ouvidos nesse mundo. Os deuses estão dispostos a destruir toda Dymond.
Teronk tentou se conter, mas não conseguiu manter a boca fechada. Rob coçou a cabeça, nervosamente. Urbi continuou.
_ Porém, segundo eles, esse destino está nas mãos dos garotos. Ou serão eles a nos salvar, ou serão eles a nos condenar. Pois um deles é destinado a guerra, e o outro ao acúmulo de grande poder e sabedoria. Porém qual dos dois será nosso salvador? Metraton ruge no sul, com suas tropas repletas de monstros e de criaturas das trevas. Seria as armas capaz de detê-lo, ou a sabedoria? Não cabeá a nós decidir.
_ O que espera que façamos? - Teronnk estava nervoso, e não poderia esconder mais. - Não temos como agir, apenas esperar que o destino venha e nos engula vivos!
Os olhos do Possowry o penetraram. Rob permaneceu quieto.
_ Nosso destino é moldado de acordo com nossas escolhas. Peço que guiem os garotos com o maior cuidado possível. Que sejam para eles os melhores tutores que já pisaram estas terras. Façam com que a escuridão nunca os encontre.
***
A comitiva imperial partira pela manhã. Zahra estava deitada em sua tenda, afastada da cidade de Luxor cerca de duzentos metros. A Possowry vira tudo o que havia acontecido na cerimônia, ou ritual como costumavam chamar os homens. E não havia gostado. Mas era apenas uma velha. Uma sombra de um passado glorioso. Um espectro sem sentido, que rondava aquelas montanhas todos os dias e noites, há muitos dias e noites.
Quando Urbi surgiu silencioso nas portas de sua morada, ela não pode deixar de sentir os pelos da nuca se arrepiarem.
_ O que fazes em meu lar, grande Amigo de Deuses e Senhor do Clã dos Brancos?
Urbi olhou para ela com calma, mas a velha entendia de sentimentos melhor que qualquer ser naquelas gélidas montanhas. E ela viu o medo, o tão temido medo, rondar como uma sombra os penetrantes olhos do tigre.
_ Mestra. - O Sumo Sacerdote fez uma mesura. - Este mundo está mudando mais uma vez. Não sei se tomei a decisão mais correta, como sempre, porém algo precisa ser feito. Não vamos esperar que os Dragões cheguem em nossas montanhas novamente.
Zahra não entendeu onde seu velho aprendiz, e posteriormente seu grande amigo queria chegar. Mas por fim, compreendeu. E um tremor percorreu todo seu corpo.
_ Tem certeza disso? Juramos perante os céus e perante Órion que não iríamos mais usar isso como defesa.
_ Sim, eu sei. Mas as circunstâncias são drásticas, e exigem soluções drásticas. - Respirou fundo, tomando forças para pronunciar sua derradeira sentença. - Recomece a recrutar Possowrys potenciais. Vamos nos preparar para a tempestade que esta vindo, minha cara. Vamos reerguer a Ordem dos Cavaleiros Ferozes.

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